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A negação da crise e a banalização da morte

A saúde pública no Distrito Federal (DF) tem enfrentado uma grave crise, acentuada após a pandemia de Covid-19. Mas suas causas são anteriores: está no modelo de gestão adotado pelo GDF. As mortes, que nos últimos dias ocuparam manchetes, telejornais e redes sociais, revelam uma profunda falha no compromisso com a vida e o bem-estar da população. E o que mais preocupa é a falta de reação dos governantes. O Governador se recusa a falar, eximindo-se de uma responsabilidade que é dele, antes de ser da sua equipe. O chefe da Casa Civil, voz importante do GDF, nega o óbvio. Segundo afirmou, em coletiva de imprensa, “não há crise, não há caos na saúde do DF”.

Vamos aos fatos: nos últimos meses, três crianças perderam suas vidas em hospitais e Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) do DF, casos que levantam sérias questões sobre a qualidade do atendimento prestado. Anna Julia Galvão, de 8 anos, Jasminy Cristina de Paula Santos, de 1 ano, e Enzo Gabriel, também de 1 ano, são nomes que simbolizam a tragédia da negligência que vem penalizando milhares de pessoas, com consequências diversas. O menino, por exemplo, esperou cerca de 12 horas na UPA do Recanto das Emas por uma ambulância que o levasse a um leito de UTI – tempo suficiente para que sua condição se agravasse irreversivelmente.

A epidemia de dengue no DF é mais uma evidência gritante de como a má gestão pode ter consequências mortais. Apenas neste ano, foram registradas 365 mortes por dengue na Capital do País. Medidas preventivas, como a eliminação de focos do mosquito Aedes aegypti e campanhas educativas, não foram devidamente implementadas, refletindo um descaso preocupante com a saúde pública. Aliás, nunca é demais repetir: os recursos próprios do GDF aplicados às ações de prevenção restringiram-se à ridícula cifra R$ 21.301,70, o equivalente a 16 salários mínimos.

A criação do Núcleo de Transporte e Remoção de Pacientes pelo Instituto de Gestão Estratégica da Saúde do DF (IGESDF) é um outro exemplo. Anunciado como uma solução para melhorar a eficiência, o núcleo falhou em suas primeiras semanas de operação, como comprovado pelo caso do bebê que morreu após esperar 12 horas por uma ambulância. A terceirização do serviço de transporte, a um custo de R$ 57 milhões anuais, aponta para uma priorização de contratos e gestão financeira em detrimento das necessidades urgentes dos pacientes. Parece um balcão de negócios.

A deficiência no transporte de pacientes é um problema crônico no DF. A falta de ambulâncias, de condutores habilitados e a burocracia na manutenção dos veículos agravam a situação. Historicamente, o Serviço de Assistência Móvel de Urgência (SAMU) tem sido desviado de sua função principal de socorro pré-hospitalar para realizar transportes entre hospitais – uma distorção de sua missão original que compromete a eficácia do atendimento emergencial.

A Promotoria de Justiça de Defesa da Saúde destacou que 61,73% do suporte avançado do SAMU foi usado para transporte de pacientes entre 2018 e 2022. Este trabalho que deveria ser feito por ambulâncias da Secretaria de Saúde. Apesar de medidas paliativas, como a contratação de motoristas temporários, a solução real requer uma reorganização completa dos recursos materiais e humanos do SAMU – e de toda a SES-DF.

Teria muitos outros exemplos a acrescentar. Mas estes são suficientes para trazer aqui, leitor, o conceito de necropolítica, desenvolvido pelo historiador Achille Mbembe: ele explica como a gestão da morte se integra às políticas públicas. O pesquisador argumenta que certas formas de poder determinam quais vidas são valorizadas e quais são descartáveis. Assim, cria-se um cenário onde o óbito se torna uma ferramenta de controle social: o que parece acontecer desde o auge da pandemia de covid-19. É como se uma vida valesse mais do que outra. E sabe a de quem vale menos nessa lógica? A das populações mais vulneráveis. E sabe quem são essas pessoas? A maioria é formada por usuários do SUS, que é público, gratuito e, em tese, universal.

No contexto do DF, o conceito de necropolítica parece se aplicar não só quando se negligencia a oferta e garantia de atendimento, mas, também, no modo como tratam das mortes: óbitos evitáveis, computados como ocorrências normais, no frio cálculo dos gestores públicos. A banalização dessas mortes, além de eticamente inaceitável, aponta para necessidade urgente de uma mudança de paradigma nos gabinetes de decisão do Buriti. O governo do DF precisa adotar uma abordagem mais humanizada, focada na prevenção, na infraestrutura adequada e no respeito à vida humana: e isso inclui seus servidores. As vidas das pessoas devem ser a prioridade absoluta. E qualquer coisa menos que isso é inaceitável. Ou se governa para a população ou se governa para os negócios.

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