Não há motivos para polêmica no transplante de coração do apresentador Fausto Silva neste domingo, 27. Quando um dos maiores nomes da televisão brasileira entrou na lista de transplantes, isso é revelador da importância do próprio SUS. Quando ele consegue fazer o transplante, deveria servir apenas para mostrar a excelência e confiabilidade do SUS na gestão dos transplantes de órgãos no país. Faustão, na fila do SUS, conseguiu fazer o transplante de que precisava.
Não existe uma fila, com lugares marcados e imutáveis, onde quem chegou primeiro é operado primeiro. O mais correto é falar em uma lista dinâmica, em que os pacientes podem ocupar posições diferentes, em função do seu estado de saúde, do lugar onde mora e onde a doação está sendo feita, além da compatibilidade entre o doador e o receptor do órgão. No caso do Faustão, dentre todos os pacientes com urgência, ele reuniu as condições adequadas para ser o receptor do órgão doado. A gravidade do caso o colocou no topo da lista e o órgão doado era compatível. É assim que funciona, no Brasil e em qualquer outro lugar do mundo.
O Sistema Nacional de Transplantes (SNT) funciona e é confiável. E dois fatos confirmam essa afirmação: o Brasil é o segundo país do mundo em quantidade de procedimentos dessa natureza. Também tem o maior programa público de transplantes de órgãos, tecidos e células do mundo, por meio do Sistema Único de Saúde, o SUS, que financia cerca de 88% dos transplantes realizados em território nacional. À frente do Brasil só Estados Unidos. Isso deve ser motivo de orgulho, nunca de dúvida sobre um assunto em que somos referência para o resto do mundo.
O que coloca os Estados Unidos à frente do Brasil na realização de transplantes é a forma de captação de doações. Lá, eles têm um sistema de “voucher” pelo qual uma pessoa pode doar o seu órgão especificamente para alguém próximo e compatível, que tem algum problema de saúde indicativo da necessidade de transplante futuro. Esta forma de doação, portanto, cria um direito de “preferência” na fila para a pessoa que foi indicada. Outra forma cogitada naquele país, mais precisamente no estado de Massachusetts, propõe que pessoas que cumprem penas em estabelecimentos de detenção possam reduzi-las por meio de doação de órgãos. Além dos possíveis problemas de natureza ética a este tipo de proposta, há críticas severas ao sistema norte-americano, apontando que os mais pobres e as minorias raciais seriam menos beneficiadas.
Na Espanha, país que é tido como o mais eficiente na captação de órgãos para transplantes, a legislação coloca todo cidadão como potencial doador, salvo o caso de famílias de pacientes com morte encefálica que se manifestarem contra a retirada de órgãos. Ainda assim, a lei não é aplicada a ferro e fogo. Há todo um trabalho de convencimento feito por equipes profissionais com as famílias.
De fevereiro de 1998 a outubro de 1998, todo brasileiro também era doador potencial. Isso foi alterado por meio de Medida Provisória que modificou a Lei 9.434/07, que regulamenta a prática de transplantes no Brasil. Desde então, a doação de órgãos é voluntária e cabe ao doador potencial deixar isso claro, seja por registro em documento, seja acordado com os familiares (que podem ou não acatar essa vontade).
No dia a dia, em 45% dos casos de morte encefálica as famílias se recusam a liberar o procedimento. E não cabe a ninguém julgá-las por isso. A perda de um ente querido é extremamente traumática e nem todos encaram a possibilidade de doação do mesmo modo. Para uns pode ser libertador, para outros evoca medos e tabus. Há uma série de questões a serem consideradas, se desejamos convencer em vez de julgar.
O fato é que temos uma rede de mais de 600 hospitais autorizados a realizar transplantes. O SUS financia aproximadamente 90% de todos os procedimentos. Também dispomos de equipes médicas internacionalmente reconhecidas pelas realizações nessa área. O SUS, como em outras situações, mostra o tamanho de sua importância e de sua capacidade na preservação da vida e da saúde do povo brasileiro.
Uma pessoa pública e com recursos como Fausto Silva, que nunca imaginaríamos ver em uma fila de serviço público de saúde, ter se beneficiado do SUS mostra o quanto o nosso sistema é inclusivo e que não faz distinção de classe socioeconômica, origem ou qualquer outra característica do paciente. Também mostra que o SUS é essencial para o conjunto da sociedade e não só para parte dela. De uma forma ou de outra, todos se beneficiam dele, como no caso do transplante do Faustão.
O nó da questão dos transplantes está no aumento da oferta de doações para resolver o drama das mais de 60 mil pessoas que vivem à espera de um doador. É nisso que devemos concentrar as nossas energias. O caso do Faustão é uma ótima oportunidade para trazer novamente a público essa importante discussão sobre a doação de órgãos no Brasil. Nem a má vontade de alguns, nem baixa estima de outros, deve nos distrair do principal. Somos um dos melhores do mundo. Podemos e devemos avançar.