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Nem heróis nem sacerdotes, somos médicos

No último dia 18, comemoramos o Dia do Médico: data em que enaltecemos a dedicação, a abnegação, o comprometimento e o empenho desses profissionais no que há de mais caro a todos nós: a defesa da vida. Especialmente nestes tempos de pandemia, médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem e outros profissionais de saúde foram chamados de heróis. Isoladas em suas casas nos momentos de maior restrição, pessoas ao redor do mundo foram para as janelas aplaudi-los.

Governantes de todo o planeta cobriram de elogios os médicos e demais profissionais de saúde pelo enfrentamento à covid-19. Mas aqui no Brasil, no Distrito Federal, esse reconhecimento ficou em discurso, pois nem ao menos o pagamento do adicional de insalubridade em grau máximo pelo excesso de exposição à contaminação pelo coronavírus saiu do papel.

Dois dias depois do Dia do Médico, fui ao Hospital Regional do Gama. Na verdade foi um retorno, pouco mais de dois meses depois de uma vistoria após a qual me vi obrigado a solicitar ao Conselho Regional de Medicina do DF que fizesse a interdição ética no atendimento da clínica médica daquela unidade de saúde. A suspensão da prestação de assistência à saúde da população é uma medida extrema e a última coisa que queremos ver acontecer, em especial sendo médicos.

Na sala vermelha da emergência do hospital, encontrei a colega de plantão, responsável pelos pacientes que se apinhavam no ambiente por onde é até difícil transitar. Oito leitos estavam ocupados, inclusive com uma criança de colo (o local é para atendimento a adultos) que tinha sofrido uma convulsão – em geral são mais, 12 até 14 pacientes em estado grave em um espaço mínimo. Mesmo não sendo pediatra, ela estabilizou a criança para que pudesse ser removida para a pediatria do Hospital Regional de Santa Maria. Sem socorro é que ela não deixaria o bebê e a mãe.

Na parede, a alguma distância da cabeça dessa colega, havia uma plaquinha com a frase “não somos heróis”. De fato, a função do médico e dos demais profissionais de saúde não é ser herói, tampouco sacerdote ou milagreiro. A prática da medicina é uma atividade profissional baseada em ciência, técnica e evidências.

Mas a realidade que cerca o médico que trabalha no serviço público de saúde, e aquela médica especificamente, é de falta de estrutura física e equipamentos adequados, de medicamentos, de exames e de apoio institucional para executar seu trabalho da forma como deveria e que todo médico almeja: o que chamamos “estado da arte”, ou seja, quando dominamos a técnica e temos os meios para dar ao paciente o melhor tratamento que podemos.

O problema no Hospital do Gama que, em especial, motivou o pedido de interdição ética é a falta de médicos, clínicos e emergencistas, para minimamente preencher as escalas em todos os turnos de trabalho. Por isso, pacientes internados ficam um, dois ou mais dias sem serem vistos por médicos, sem ter verificada a prescrição médica, sem os pedidos de exames necessários para serem encaminhados para cirurgia ou até para receberem alta. O resultado disso é desastroso: desde aumento de custos para o Sistema Único de Saúde até o aumento do risco de óbitos.

Mortes evitáveis ocorrem por causa disso e, de diversas formas, isso recai sobre os médicos e demais profissionais – por implicações éticas, administrativas e legais, mas também pelas implicações emocionais e psicológicas, no nível pessoal. Não ter a condição de dar a assistência adequada e merecida ao paciente é um martírio para nós.

E o exercício profissional de ninguém deve ser assim. Enquanto médico, humanista, cidadão e sindicalista, minha luta é para mudar essa realidade, para que o médico e demais profissionais da saúde tenham os meios pra realizar seu potencial, sua missão e a plenitude do prazer de exercer sua atividade profissional que é curar, cuidar, evitar ou mitigar a dor de nossos pacientes.

E o que esperamos do Poder Público, que administra os recursos da sociedade para a prestação de assistência pública à saúde, é que nos dê os meios para realizar, nas melhores condições possíveis, o nosso trabalho. Não nos chamem de heróis, não nos cobrem o sacerdócio nem nos exijam milagres. Só nos deem os meios para fazer o nosso trabalho da melhor forma possível.

 

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